A evolução tecnológica do sexo

O sexo é ancestral. Mas ele não é o mesmo desde que vivíamos em cavernas. Saiba quando e como os casais admitiram que não eram tão comportados
19/03/2018 02:03 Educação
 (CSA-Printstock/iStock)
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“A primeira impressão causada pelo jato de água é dolorosa. Mas logo o efeito da pressão, a reação do organismo ao frio, que leva a pele a enrubescer, e o restabelecimento do equilíbrio criam para muitas uma sensação tão agradável que é necessário tomar precauções para não deixá-la ultrapassar o tempo prescrito, geralmente de quatro ou cinco minutos. Depois da ducha, a paciente se seca, reaperta o espartilho e retorna saltitante para o quarto.”

No mundo ocidental, as crises histéricas ganharam diagnóstico e tratamento específicos depois que o médico grego Hipócrates, no século 5 a.C., estabeleceu que essa “doença feminina” – histeria deriva da palavra grega histeros (útero) – deveria ser curada com massagem genital. Para Galeno, médico de extrema influência no Império Romano no fim do século 2, o problema era causado pela retenção de fluidos no útero, que precisavam ser liberados pelo marido. O tratamento eficiente virou o casamento, para haver penetração e liberação dos “demônios interiores” precursores de todos esses problemas de saúde. Na falta do “remédio” ou como terapia complementar, uma parteira ou um médico poderiam fazer uma massagem na vulva e na vagina para alívio temporário. Tudo em nome da purgação do corpo.

Hoje, sabe-se que a histeria não passa de um diagnóstico equivocado inventado por doutores homens para explicar o que até hoje ainda é tabu: o desejo feminino. Ou o comportamento indesejado de mulheres. Mas, naquele tempo, o prazer feminino era caso de saúde pública.

Em 1858, o presidente da Sociedade Médica de Londres na época, Isaac Baker Brown, divulgou que a maioria das doenças femininas estava relacionada à superexcitação do sistema nervoso por impulsos sexuais. Dependendo do grau de estimulação, as mulheres poderiam ser acometidas por vários males, nesta ordem: histeria, irritação da coluna vertebral, espasmos, episódios de catalepsia (estado em que o corpo fica paralisado), ataques epiléticos, idiotismo, mania e morte.

E mais: que o nervo pudendo, responsável por transmitir estímulos dos genitais para o cérebro, era o principal vilão. A “cura” seria remover cirurgicamente o clitóris. Brown foi expulso da London Obstetrical Society em 1867 com 194 votos a favor de sua saída e 38 contra. E morreu seis anos depois, por complicações de um acidente vascular encefálico que o deixou imobilizado.

Ainda hoje, a remoção do clitóris continua fazendo estragos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 150 milhões de meninas e mulheres vivem as consequências da mutilação genital. Apesar de considerada ilegal em alguns países da África, muitas tribos fazem rituais de mutilação com a anuência das famílias, porque consideram que, assim, vão “purificar” as vítimas e fazer com que consigam “casamentos melhores”. Na prática, significa que estão tirando das meninas o direito de ter prazer no sexo.

Tratar uma “epidemia crônica”, que, portanto, exigia retorno constante ao consultório, virou um negócio bem lucrativo. Mas custava um enorme esforço dos médicos também. Para eles, não era nada excitante movimentar o dedo repetitivamente durante mais de uma hora em cada paciente, mantendo o foco e o ritmo para garantir o sucesso do tratamento. Se o consultório estivesse lotado, o cara chegava ao fim do dia com uma lesão por esforço repetitivo. Daí o interesse em desenvolver equipamentos mais sofisticados e eficientes para a manipulação dos genitais.

Um dos aparatos patenteados, em 1869, foi uma mesa acolchoada com uma abertura para encaixar a pélvis e, sob ela, uma máquina a vapor que fazia vibrar uma esfera massageadora dos genitais. Nascia o primeiro vibrador. O inventor foi o médico americano George Taylor, que advertiu: o instrumento deveria ser usado apenas com supervisão médica, para evitar que as pacientes abusassem da técnica.

Convenhamos que uma mesa com um motor embaixo era um trambolho igualmente caro e de difícil transporte para que pudesse ser popularizado. O tratamento continuava fechado atrás das portas de clínicas. Até que o inglês Joseph Mortimer Granville patenteou em 1880 um aparelho movido a bateria, mas, curiosamente, com o único objetivo de que os homens, e apenas eles, o usassem como massageador muscular, para aliviar tensões. As mulheres ignoraram essa recomendação, claro. Mas foi ali que os massageadores ganharam a função de relaxantes musculares para o corpo todo – e para ambos os sexos. Onde quer que houvesse dor ou doença, a vibração aumentava a circulação sanguínea da região e sumia com os sintomas.

“Vibrador é vida”, “Todo o prazer da juventude dentro de você”, “Vibração traz vigor, força e beleza”, “Vibre seu corpo – você não tem mais direito a ficar doente!”, “Compre agora e receba grátis o valioso livro Saúde e Beleza.” Era só mandar o cupom preenchido pelo correio e receber a encomenda na maior discrição. Os catálogos dos produtos mostravam desde os mais básicos até as versões “deluxe”, três vezes mais caras. Os vibradores da alta sociedade vinham em uma “linda caixa preta, perfeita para viagens de fim de semana”, e com acessórios para diferentes funções: pulsar, sugar, dar suaves batidinhas, girar as pás de um miniventilador…

No começo do século 20, os massageadores se proliferaram, movidos a manivela, pedais, ar, água, gás, bateria e energia elétrica. Em 1917, havia mais vibradores do que torradeiras nas casas dos americanos.Mas na década de 1930 os aparatos caíram em desuso. É provável que o conhecimento maior da sexualidade feminina e o uso do acessório em filmes eróticos tenham levado ao entendimento de que as máquinas medicinais eram, na verdade, fontes de prazer sexual. Eles não passavam de masturbadores espertinhos disfarçados de remédio.

Descoberta a farsa, os acessórios sumiram dos anúncios e dos lares das “famílias de bem”. As esposas não ousariam ter um brinquedo que passasse atestado de falta de eficiência do marido. Muito menos queriam ser flagradas com um instrumento usado em filmes de sacanagem ou para relações “anormais e imorais”, entre pessoas do mesmo sexo.

Além disso, o “tratamento” popularizado por décadas não curou mulher alguma. Afinal, não havia doença para curar. Mesmo assim, o neurologista austríaco Sigmund Freud procurou outras respostas. Para Freud, os problemas de homens e mulheres têm origem em traumas sexuais na infância. A histeria – que, na visão dele, poderia afetar ambos os sexos – impediria que as pessoas sentissem prazer no coito “normal”: a penetração do pênis na vagina.

Aliás, esse conceito instituiu a crença na existência de dois orgasmos. Freud considerava que, durante o desenvolvimento sexual, as meninas tinham prazer com o clitóris assim como os meninos com o pênis. E que elas sentiam inveja do órgão masculino. Na vida adulta, com a chegada de um parceiro, se a mulher não migrasse o prazer do clitóris para a vagina, seria um indício de imaturidade, frigidez e outros tantos problemas.

Não chegar ao clímax somente com a penetração era sinônimo de conflitos inconscientes gerados pela libido. As sessões de análise ajudariam a revisitar esses acontecimentos do passado, enfrentá-los e resolvê-los. A partir de estudos que começaram a ser realizados mais tarde, principalmente os liderados pelo ginecologista William Masters, essa teoria dos dois tipos de orgasmo se provou uma falácia.

O verão de 1938 entrou para a história da sexualidade. Foi durante aqueles meses quentes que um biólogo chamado Alfred Kinsey assumiu a coordenação do novo Curso de Casamento da Universidade de Indiana. Fazia 20 anos que ele era professor de zoologia e pesquisador da instituição, período em que se destacou pelos trabalhos em biologia evolutiva e entomologia, que é o estudo dos insetos.

As aulas sobre relações conjugais logo levaram Kinsey a se aprofundar em pesquisas que decifrassem os hábitos dos casais. Ele começou um estudo que culminou, dez anos e 11.240 entrevistas depois, no livro Comportamento Sexual no Macho Humano. Nas 804 páginas cheias de termos técnicos e estatísticas foram detalhados hábitos masculinos que chocaram os americanos, como o fato de 11% praticarem sexo anal no casamento, 8% deles serem “exclusivamente homossexuais por pelo menos três anos entre as idades de 16 e 55 anos” e 48,9% fazerem sexo oral na esposa.

Tudo isso em uma época em que homossexualidade e sexo anal e oral eram crimes previstos em lei e passíveis de prisão. O biólogo virou uma celebridade. A revista Time publicou que, desde o lançamento da obra …E o Vento Levou, best-seller de 1936, os livreiros não viam nada parecido. “Em menos de dois meses, já foram vendidas 200 mil cópias”, dizia o artigo.

Escândalo mesmo foi quando Kinsey lançou, em 1953, o volume 2, Comportamento Sexual na Fêmea Humana. Primeiro, por causa de resultados como os que mostravam que 69% das mulheres tinham fantasias sexuais, 62% se masturbavam e, desse grupo, 45% chegavam ao orgasmo em menos de três minutos depois de começar o sexo solo.

O segundo motivo do choque: estava evidente que o desejo feminino era tão pulsante quanto o masculino, que entre quatro paredes não existia o normal nem o anormal e que a vida secreta de homens e mulheres não era assim tão comportada. O polêmico trabalho de Kinsey, que morreu em 1956, aos 62 anos, foi considerado o precursor da revolução sexual a partir de 1960.

Entre 1938 e 1963, o biólogo americano Alfred Kinsey e sua equipe realizaram 11.240 entrevistas com cerca de 300 questões cada sobre hábitos sexuais. Alguns dos achados são estes aqui.

Fonte: The Kinsey Institute.

Os anos 1970 foram o marco inicial das casas de produtos eróticos fundadas por mulheres para mulheres, que vendiam, em ambientes discretos, livros sobre saúde sexual e prazer e acessórios anteriormente desenvolvidos para tratar histeria. A primeira loja, inaugurada em 1974 em Nova York, foi a Eve’s Garden (Jardim de Eva). Depois veio a Good Vibrations (Boas vibrações), em 1977, em São Francisco.

Com os movimentos de liberdade sexual a favor, os brinquedos eróticos voltaram ao mercado. E ressurgiram repaginados, disfarçados e até desavisados. Em 1968, a empresa japonesa Hitachi começou a vender nos Estados Unidos um massageador elétrico para aliviar tensões musculares nas costas, no pescoço e nos pés, o Magic Wand (varinha mágica). Não demorou para que psicólogos e terapeutas sexuais recomendassem o produto para outro uso: estimular o clitóris.

Passaram-se anos de popularidade entre as americanas até que a companhia japonesa fizesse, em 1999, um comunicado oficial de que o produto deveria ser usado apenas para fins de saúde. Mas aí a varinha apareceu em um episódio da série Sex and the City, em 2002, e a coisa fugiu de vez do controle. O produto esgotou rapidamente nas sex shops e entrou para o top 10 da Amazon na seção de cuidados com a saúde.

Para evitar que o nome da tradicional empresa fosse associado a um produto erótico, a Hitachi quis encerrar a produção do acessório involuntário em 2013. Graças às fãs e à pressão do distribuidor americano, em junho daquele ano o produto foi relançado com o nome de Magic Wand Original. E continua até hoje entre os vibradores mais vendidos e recomendados do mundo. A série Sex and the City também foi responsável pela popularização de outro massageador, o Rabbit, em forma de coelho.

Não é de se surpreender que as mulheres ditem as regras do mercado de brinquedos eróticos e impulsionem a criação de opções com alta tecnologia e máxima discrição. Vibradores em forma de batom, gatinho e pingente de colar fazem o maior sucesso. Segundo dados da Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual, 72,2% do público que compra produtos sensuais é feminino. Elas respondem por 55% das vendas online, 68% das realizadas nas lojas físicas e 90% das feitas em casa, por consultoras. Um dado interessante é que 90% delas compram com a intenção de usar os objetos a dois, e não sozinhas.

Entre 2005 e 2009, o faturamento do setor no Brasil cresceu 80%. Com o crescimento nas vendas, aumenta também a preocupação com a segurança para a saúde. Algumas pessoas podem ter reações alérgicas a componentes químicos usados nos acessórios.

Além disso, eles podem conter ftalatos, que entram na composição de vários produtos de uso diário, como escovas de dente. Essas substâncias são usadas para deixar o plástico mais maleável e ainda assim resistente, mas podem interferir no funcionamento do sistema endócrino e, inclusive, levar à infertilidade, segundo um estudo feito pela Universidade de Rochester, nos Estados Unidos.

Esses químicos estariam envolvidos também no surgimento de casos de diabetes, porque têm potencial para influenciar o mecanismo de liberação de insulina, hormônio secretado pelo pâncreas responsável pelo metabolismo de açúcares no organismo. Para as gestantes, há o risco de contaminação dos bebês, resultando em deformidades no sistema reprodutor e tendência a diabetes e obesidade. O meio ambiente também é ameaçado, porque a substância pode contaminar o solo e a água.

Na Europa, os ftalatos foram banidos dos brinquedos infantis. No Brasil, não existe proibição, porque nenhuma pesquisa comprovou a relação direta do químico com os males. Mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária determina que a quantidade máxima nas fórmulas seja de 3%.

No mercado erótico, algumas empresas já trabalham com versões sem essas substâncias e investem em outras linhas a favor da saúde e do meio ambiente. Há, por exemplo, lubrificantes orgânicos e acessórios de madeira ou vidro altamente resistente que substituem materiais feitos de plástico ou borracha. Na Alemanha, já existem sex shop veganas: nada de componentes de origem animal, como o couro.

Não foram apenas as sex shops que saíram lucrando com o aumento do número de pessoas que recorrem ao erotismo para ter uma vida sexual mais feliz. Também ganharam as mulheres com dificuldade de atingir o orgasmo ou que nunca chegaram lá, ou que deixaram de experimentar prazer depois da menopausa. Todas foram incentivadas a tocar o próprio corpo e perceber que, sim, elas podem. E isso tem a ver com autoestima.

Este conteúdo foi originalmente publicado no livro O Livro Proibido do Sexo — o amor, o prazer e a sacanagem, da jornalista Marcia Kedouk.

 

Fonte: Marcia Kedouk / Super Interessante

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