Sem escola, comunidade ribeirinha no PA sofre expropriação territorial

26/07/2013 00:20 Educação

A criação de uma área de preservação ambiental é uma notícia que soa bem aos ouvidos da opinião pública: amplas paisagens intocadas,  livres da devastação humana. Mas essa não é a narrativa dos moradores do beiradão do Rio Iriri, alguns dos quais levam até 20 dias de suas casas até a sede de Altamira, no coração do Pará.

Habitantes centenárias de uma região relativamente protegida do desmatamento por sua rede de rios e ecossistemas, algumas dezenas de famílias ribeirinhas viviam com o que provinha da floresta e do rio. Mas o Estado chegou lá de forma inesperada: em 17 de fevereiro de 2005, com a criação da Estação Ecológica da Terra do Meio (EsecTM), a população ali presente viu seu canto de mundo ser transformado em uma unidade de conservação restritiva, ou seja, uma reserva que não prevê a existência de moradores. A medida funcionou como um aval oficial para a contínua violação de seus direitos mais básicos, como saúde e educação, além de ter servido como cheque em branco para a expulsão de suas terras.

Estação ecológica, questão social

Alguns homens de terno se debruçam sobre um mapa. Sabem que se o traçado de futuras áreas de conservação ocupar uma vasta área, os protestos internacionais devem cessar. Há tempos o Brasil é pressionado por outros países e organizações internacionais a proteger a Amazônia. Alguns fazendeiros e membros da bancada ruralista não gostam da ideia e, quase mecanicamente, o traçado desce alguns centímetros no mapa. Moradores tradicionais da região agora vivem em uma estação ecológica, que não prevê a presença do homem. Suas existências são ignoradas pelo poder público, que começa com ameaças para que saiam de seus lares e lhes nega direitos fundamentais.

A história acima pode parecer ficcional, mas infelizmente é bastante concreta. A Estação Ecológica da Terra do Meio compreende uma área de  3.373.133,89 de hectares e faz parte de um megamosaico de preservação ambiental no coração do Pará, criado após a morte da missionária norteamericana Dorothy Stang, assassinada em 2005. Na época, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) realizou um mapeamento de toda população ribeirinha do local, demarcando as regiões habitadas por populações tradicionais. O estudo indicava que, nas áreas onde havia ocupação, deveriam ser criadas reservas extrativistas (Resex), um tipo de unidade de conservação em que se reconhece a presença e participação de populações que habitam em território preservado.

“Os ruralistas fizeram pressão para tirar da estação ecológica suas fazendas, ou seja, reduzir a unidade de conservação para não afetar as apropriações desses ruralistas. Havia deputados e pessoas com muita influência”, relata o cientista social Mauricio Torres, que pesquisa a região desde 2004. “Quem pagou a conta? As populações tradicionais”, complementa.

E pagaram de diversas formas. Dividida – uma parte das famílias se encontra nas Resex do Riozinho do Anfrísio e do Iriri e uma outra na Estação Ecológica – a comunidade ribeirinha se enfraqueceu e a centenária ocupação da floresta começou a se esfarelar: ao subir o rio, muitas casas abandonadas já podem ser vistas. Pelas características locais, os ribeirinhos ficam espalhados e, ao mesmo tempo, dependentes uns dos outros. No meio da Amazônia, dias e dias distantes de tudo, a convivência é mais do que sociabilidade e identidade: é questão de sobrevivência, como mostra artigo de Eliane Brum.

“Vamos ter que colocar os filhos para estudar de qualquer jeito, não vamos criá-los como eu fui criada”, relatou Francisca Martins da Silva, prevendo sua saída do beiradão do rio Iriri. Assim como outras mulheres e homens, Francisca pode ser obrigada a migrar das margens do rio para as margens da cidade de Altamira, que nos últimos anos ganhou destaque por abrigar a futura usina hidrelétrica de Belo Monte, para buscar educação para seus filhos.

Outra Francisca, de sobrenome Gomes da Silva, 48, não gosta nem de falar desse assunto. Foi para a cidade com os quatro filhos e hoje em dia não tem nenhum deles vivendo por perto. Se tivesse escola no beiradão, ela jura, ficaria por lá, sem ter que trabalhar na cozinha dos outros. Sem ter que lidar com a perda dos meninos.

“Só Deus sabe como é que eu vivo. Eu vim-me embora de lá e perdi meus filhos. Foi um sofrimento para eu criar esses meus filhos. Hoje só tem um que está vivo e, assim mesmo, não sei nem onde é que ele anda. Mataram dois, que eu vi, e o outro sumiu está com mais de cinco anos , o meu caçula. Dizem que mataram… acho que mataram, porque saiu de casa, nunca mais voltou e não dá notícia. Acho que mataram, né?, porque nunca mais apareceu.” *

Torres, que segue estudando a situação dos beiradeiros, ressalta que a escola, para os ribeirinhos, muitas vezes significa a possibilidade de alfabetização, tanto de jovens quanto de adultos. “Há um abandono crônico há tantas gerações que a maior preocupação de uma mãe é que o filho não reproduza o seu analfabetismo”, pontua. A negação do direito à educação seria “um instrumento expropriatório, ou seja, expulsão por abandono de direitos civis.”

Sob o ponto de vista dos beiradeiros, a decretação de EsecTM foi uma faca de dois gumes. “Antes da criação, eles estavam sendo expulsos por grileiros, e, logo após, passaram a ser pressionados pelo órgão gestor da unidade de conservação das maneiras mais absurdas do mundo. Existem relatos do antigo gestor da EsecTM chegar lá e tocar fogo na casa de uma família”, lembra Torres, que faz questão de chamar a atenção de que a atual gestão tem uma postura bastante diferente e preocupada com a questão social, embora tenha sua ação bastante tolhida por limitações do próprio órgão.

A gestão da estação ecológica é feita pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental do governo brasileiro. Desde a chegada de Tathiana Chaves, a nova gestora da EsecTM, o discurso que pregava o fim das comunidades foi deixado de lado e houve a iniciativa de criar um Termo de Compromisso (TC) que estabelece, entre beiradeiros e ICMBio, direitos e deveres para os habitantes da unidade de conservação. O TC reconhece os ribeirinhos como legítimos habitantes e protetores do meio ambiente.

Mas a estrada para a construção desses direitos é sinuosa. Recentemente os moradores fizeram um abaixo-assinado (confira na galeria abaixo o documento e fotos do beiradão) com suas impressões digitais reivindicando a instalação de escolas no local.

A questão já chamou atenção do Ministério Público Federal (MPF). Thais Santi, procuradora do MPF em Altamira, tem olhado com urgência para os temas. “Não adianta esperar: tem criança sem aula, adultos analfabetos. É uma questão de reconhecer a dignidade e a cidadania dessas pessoas. Queremos que o Estado chegue até lá”, declarou.

Já a Secretaria de Educação de Altamira informou que a situação já está sendo observada pela municipalidade. A responsável pela pasta, Aloíde França da Silva, está coletando informações das organizações que atuam na região. “Para o MEC é como se não existissem essas crianças. Ainda precisamos matricular as crianças como fizemos na Resex do Riozinho do Anfrisio. E isso só poderá ser feito em 2014, pois o Censo já fechou”, avaliou.

Outro problema é a falta de professores interessados em trabalhar em lugares tão distantes, já que a remuneração oferecida ainda é muito próxima do que se paga na cidade. Há apenas um valor adicional para trabalho rural e um extra para feriados.

Problemas represados

Mesmo onde os alunos são contabilizados pelo Censo e onde há escolas construídas há mais de 12 anos – como ocorre nas Resex do Riozinho do Anfrísio e do Rio Iriri -, e até na zona urbana, faltam professores. Com a instalação do canteiro de obras de Belo Monte, as empreiteiras passaram a construir escolas para os filhos dos trabalhadores da futura usina. Os salários de docentes chegam a R$ 4 mil. “Temos perdido muitos professores para as empresas”, relata Aloíde.

Para Thais Santi, do MPF, a justificativa é compreensível, mas não exime o poder público de arcar com suas responsabilidades. “É impossível negar que Altamira está numa situação difícil graças a Belo Monte. Mas os professores têm que ser contratados de alguma forma e gratificados para cumprir suas funções até conseguirmos efetivamente propor políticas que deem conta das particularidades dessas populações”, declarou.

Mesmo no cenário adverso, tanto a Secretaria de Educação quanto o Ministério Público parecem estar caminhando no sentido de garantir os direitos a essas populações. Nas últimas semanas, uma professora foi contratada e começará a trabalhar nas escolas já construídas dentro de uma das reservas extrativistas da região. “A Constituição diz que educação é direito de todos. Então a partir do momento em que há uma reivindicação, vamos tentar atender. É uma área distante, mas temos que consultar as populações, ver quais são as condições de implementação, merenda, transporte, estrutura. E não vai ser de um dia para o outro”, informa Aloíde.

O problema é que de um dia para o outro, a situação pode se agravar. Apesar de o TC  representar avanços na garantia de direitos básicos aos beiradeiros, ainda resta sua aprovação pelo Ministério do Meio Ambiente. “Eu temo por uma orientação preservacionista do MMA que vai contra essa parte do ICMBio, que luta pelos direitos dessa população e entende que as condições de vida dos beiradeiros fortificam o ecossistema”, afirmou Torres.

Para ele, há uma visão que defende que o ribeirinho seja retirado de qualquer forma. “Agora a mineração, as concessões florestais e as grandes madeireiras, isso aí pode, é legal, é tranquilo”, ressalta. Em sua opinião, é cada vez mais comum o uso do discurso ambiental como forma de exclusão social.

Enquanto isso, Cleomar Gomes, 24, continuará sonhando com o beiradão, onde todos eram unidos e agora estão separados. “Aqui em Altamira, é difícil. Aqui na rua é muito perigoso, para as crianças e jovens, de estar na rua, passa muito ônibus dessa firma [Consórcio Construtor de Belo Monte]”.

Bené Castro continuará achando que a pessoa tem que aprender. “Eu mesmo, quando chego na rua [na cidade], às vezes entro numa rua e não é para eu ir naquela. Eu vou procurar, e não sei qual é a rua – toda rua tem o nome dela, mas eu não sei qual é.”

E Francisca Gomes Da Silva continuará com os três filhos enterrados longe do beiradão, acreditando que foram mortos “porque nunca mais apareceram”. Mas o abaixo-assinado faz questão de lembrar que o lugar que hoje é uma estação ecológica, já foi território e floresta e pode e deveria ser escola. “É onde nascemos e onde temos nossos mortos enterrados.”

*Os relatos dessa matéria foram compilados pelos pesquisadores Daniela Alarcon e Mauricio Torres, que elaboram atualmente um relatório sobre a situação dos beiradeiros na região, analisando as condições de vida dessas famílias. As fotos são de autoria de Daniela Alarcon.

 

Fonte: Pedro Ribeiro Nogueira, do UOL

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