'O futebol brasileiro é uma sujeira', diz Belluzzo, ex-Palmeiras

12/06/2014 09:13 Esporte
Luiz Gonzaga Belluzo, ex-presidente do Palmeiras.. Walter Campanato/Abr
Luiz Gonzaga Belluzo, ex-presidente do Palmeiras.. Walter Campanato/Abr

Terra Magazine ouviu Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-presidente do Palmeiras e à época testemunha de episódios decisivos em relação à Copa que se inicia nessa quinta-feira, 12. Aqueles eram dias em que a Fifa e o governo do Brasil debatiam a escolha da sede da abertura do Mundial. Belluzzo foi também integrante da comissão do Clube dos 13 que negociaria os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro pelos anos seguintes, até 2015.

 
Negociação essa uma batalha, que tinha – e teria – o vencedor de desde sempre, a TV Globo. E que, dizia-se, teria também como interessados a Rede Record e a Rede TV!, e uma oferta, não da Globo, de algo como R$ 5 bilhões pelos direitos de transmissão.
 
Como se sabe, o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, chefe da delegação do Brasil na Copa da África do Sul, implodiu o Clube dos 13 e assim facilitou a negociação para a Globo. Como se sabe, a Copa do Mundo terá como palco de abertura o estádio do Corinthians, o chamado Itaquerão.
 
A propósito de tanto, de todo esse enredo que chega ao Itaquerão, Belluzzo recorre ao filósofo alemão Friedrich Hegel:
 
-A verdade é o todo…
 
Ainda a propósito de tanto, a presidência do Palmeiras e algumas coronárias operadas depois, Luis Gonzaga Belluzzo resume:
 
-O futebol brasileiro, também o brasileiro, é assim, não vamos nos iludir, é jogo sujo, é uma sujeira. A minha passagem pelo futebol me ensinou que a política do futebol é uma das coisas menos desejáveis, e, mais, eu acho que a política do futebol deveria sofrer uma alteração muito profunda, com uma mudança de homens… (o futebol) só com escafandro e, na verdade, algum traje espacial para te defender da contaminação, da sujeira.
 
Terra Magazine: Quando da escolha, ou véspera da escolha de São Paulo como sede da Copa você era presidente do Palmeiras, está certo?
 
Luiz Gonzaga Belluzzo: Sim, está certo.
 
E também estava na comissão de negociação do Clube dos Treze para a venda dos direitos do Campeonato Brasileiro…
 
A venda dos direitos de transmissão, que nós queríamos transformar em uma licitação.
 
E o que aconteceu? É essa história que nós vamos contar.
 
Bom, a gente tem que começar a história com a eleição do Clube dos Treze. Eram dois candidatos: o então presidente e hoje presidente do Grêmio Fábio Koff e o candidato Kléber Leite, que foi presidente do Flamengo, empresário de futebol e que tinha interesse em vários eventos esportivos como empresário.
 
Eles eram candidatos de que forças?
 
Ele era candidato do Ricardo Teixeira e do Marco Polo Del Nero, eles fizeram várias reuniões na Federação Paulista. A eleição foi uma eleição difícil, porque não era tão simples assim cooptar muitos presidentes…
 
Havia ligação entre a eleição e a venda dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro…
 
Isso, na verdade essas relações entre a CBF e os direitos de transmissão sempre foram muito claras, históricas. E tem gente que sobreviveu e até assumiu posições econômicas superiores a sua trajetória pessoal, gente que era uma espécie de intermediário nessa negociação, gente que ainda elege presidente de clube e ainda palpita por aí…
 
Negociação essa que sempre se deu com a Globo.
 
Com a Globo, exatamente. A Globo que, na verdade, dava, e ainda dá, muito importância ao futebol em sua programação. E nós, na verdade, conseguimos, foi o Ataíde que fez isso, Ataíde Guerreiro, que hoje é vice-presidente de futebol do São Paulo, ele conseguiu eliminar o direito de preferência que a Globo tinha…
 
Até então a Globo tinha direito de preferência?
 
A Globo tinha. Ele conseguiu eliminar isso no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Em princípio, a licitação seria em igualdade de condições, entre a Globo e os outros candidatos, entre eles e a Record. Parece que a Rede TV! fez um aceno… A Record dizia que ofereceria R$ 5 bilhões, se não me engano.
 
Eu não me lembro exatamente qual era a cifra, mas era uma cifra muito importante, porque, para você ter uma ideia, antes da mudança de estilo de negociação, o Palmeiras recebia 30 milhões, mais um pouco, que correspondia ao pay-per-view, e Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Flamengo recebiam igual, a mesma coisa acho que Vasco também. Depois vinham outros clubes, com cotas menores. Depois a Globo mudou ao sentir que poderia haver alguma ameaça ao seu monopólio nos direitos de transmissão, ela mudou o estilo de negociação. Então, ela rompeu. A eleição do Clube dos Treze foi ganha pelo…
 
…Koff.
 
… pelo Fábio Koff. Portanto, o que aconteceu depois da eleição foi que, em uma reunião no restaurante El Tranvía, o Sanchez me disse…
 
Andrés Sanchez, o presidente do Corinthians?
 
É.
 
Que havia sido chefe da delegação brasileira na Copa do Mundo, a convite de Ricardo Teixeira, presidente da CBF, que já havia se acertado novamente com a Globo, depois do rompimento no início dos anos 2000…
 
Isso. O Sanchez me disse que ele iria “dinamitar o Clube dos Treze”, que precisava acabar com aquilo. Me disse isso no almoço em estavam presentes Luis Paulo Rosenberg, Juvenal Juvêncio, do São Paulo, e Luis Álvaro, presidente do Santos…
 
Nesse momento da história, Ricardo Teixeira já havia refeito suas relações com as Organizações Globo, que tinham sido interrompidas no começo da década.
 
É. Na verdade, eu não tinha um conhecimento mais profundo disso, vocês tinham. Mas enfim, o Andrés me disse isso, e eu disse: “isso vai ser muito ruim para os clubes, porque vocês vão perder um instrumento de luta política dentro do futebol, que você sabe que não é um dos ambientes mais…
 
…saudáveis….
 
… saudáveis. Nós vamos perder esse instrumento”. E, de fato, o Clube dos Treze não existe mais, foi destruído naquele momento. E a Globo mudou o padrão de negociação, e fez uma diferenciação muito mais forte entre os clubes. Eu já não estava, aí eu fui para o hospital, fiquei doente, já não acompanhei mais de perto.
 
Operou o coração…
 
Operei o coração, as coronárias, e quando eu saí já estava colocada em marcha a outra negociação, com uma diferenciação grande entre Flamengo e Corinthians, a Patrícia Amorim também participou, Flamengo e Corinthians de um lado, e os outros clubes com cotas sensivelmente menores.
 
Nesse tempo se dava a escolha da sede em São Paulo. 
 
Certo.
 
Então, seria sede da Copa em São Paulo. Tem um episódio que o Morumbi tinha sido mais ou menos anunciado…
 
Houve uma reunião. Eu também não acompanhei muito de perto isso, mas eu vi de longe, que o Morumbi seria o estádio escolhido, apesar de não apresentar, de fato, à época, as condições exigidas pela FIFA, o “padrão FIFA”. Eu queria dizer que o estádio do Palmeiras, pelo qual eu estava batalhando e consegui, na verdade, botar de pé, não estava nesse jogo, eu não queria botar o estádio do Palmeiras nesse jogo, porque eu achei que não era conveniente, por várias razões, inclusive porque ia envolver acusações de impropriedade no uso de recursos etc. etc., e eu não queria meter o Palmeiras nessa história.
 
Quem defendia o Morumbi?
 
Olha, na verdade, quando houve a primeira reunião no Morumbi, o Lula defendeu o Morumbi. O Lula, por algumas vezes, reiterou isso.
 
Isso durante a Copa do Mundo [de 2010].
 
Isso. Na verdade, várias matérias saíram, basta conferir, com ele defendendo o Morumbi. Por incrível que pareça, a memória dos brasileiros é muito ruim, eles esquecem, misturam as coisas e tal.
 
Depois, jogo jogado…
 
Depois, ele apoiou…
Depois apoiou com fervor o Itaquerão…
 
… apoiou o Itaquerão, de fato, com fervor. E na verdade, havia outro projeto.
 
…Pirituba…
 
Pirituba. Havia o Piritubão. Eu fui chamado pelo então prefeito [Gilberto] Kassab, que me disse…
 
…dizendo à época que tinha a ver com um local para a EXPO 20, que São Paulo disputaria como sede…
 
Isso, porque Pirituba ia ser não só um estádio, mas um centro de eventos etc. Era um projeto. Subitamente, o Piritubão virou Itaquerão.
 
Esse “subitamente” tem a ver com a negociação, Clube dos Treze, direitos de transmissão etc. etc.?
 
Bom, você sabe que no futebol, como dizia o filósofo Hegel, “a verdade é o todo”, né? Então, esse conjunto de coisas estava todo ele ligado, esse conjunto de interesses. Mas não podemos esquecer que a “The Economist”, uma revista séria, apesar de eu discordar da linha ideológica dela, publicou agora três matérias impressionantes sobre futebol. Nesse último número, chamado “Beautiful game”, “Jogo muito bonito”, que nós todos gostamos, mas, “dirty business”, ou seja, “negócio sujo”. Então, o futebol brasileiro, também o brasileiro, é assim, não vamos nos iludir, é jogo sujo, é uma sujeira. A minha passagem pelo futebol me ensinou que a política do futebol é uma das coisas menos desejáveis, e mais, eu acho que a política do futebol deveria sofrer uma alteração muito profunda, com uma mudança de homens…
 
Se deveria entrar no futebol só com escafandro?
 
Ah, é, só com escafandro e, na verdade, algum traje espacial para te defender da contaminação, da sujeira. O futebol, eu acho um esporte maravilhoso, não deixo de torcer para o futebol, hoje mesmo escrevi um artigo no jornal “Valor”, dizendo que eu vou torcer para o Brasil, vou torcer desesperadamente para o Brasil, como sempre torci, sempre torci pelo Palmeiras, e vou continuar torcendo. Mas é melhor a gente não olhar para o outro lado. Ou é melhor a gente olhar para um lado só, para o “beautiful game”.
 
Você que estava dentro, no coração dessas negociações para usar uma expressão … durante boa parte do tempo, a impressão que fica é que, para evitar que um competidor vencesse a disputa pelos direitos do Campeonato Brasileiro, o prêmio do Sanchez foi o Itaquerão…
 
O que eu sei, isso eu tenho certeza, é que a Rede Globo rachou os clubes. A negociação era feita coletivamente pelo Clube dos Treze, e passou a ser feita individualmente, e favoreceu o Corinthians. O Corinthians e o Flamengo, na verdade, foram os que receberam a cota maior. E essa cota vai ser maior ainda daqui para frente, a diferença vai ser muito grande. Eu acho muito estranho que os presidentes de clubes grandes, porque o Palmeiras tem 15 milhões de torcedores, a capacidade aquisitiva dos torcedores do Palmeiras é grande, tudo que você coloca à venda no Palmeiras – eu vou ter que fazer aqui a defesa do meu clube, se você me permite – …
 
…claro.
 
… vende, então não há nenhum sentido em achar que a marca do Palmeiras vale muito menos do que a marca do Corinthians, com todo o respeito ao Corinthians. O Corinthians é um grande clube.
 
Isso vai criar um gap…
 
Isso vai criar um gap, um Campeonato Espanhol aqui…
 
Com dois ou três na frente…
 
…com dois ou três na frente. O Palmeiras tem a sorte de ter uma arena que, provavelmente, vai lhe dar uma receita adicional. Mas isso não é verdade para outros clubes. É uma arena que está em um local privilegiado, foi construída com características especiais. Mas a diferença vai permanecer, e isso é muito ruim para o futebol brasileiro.
 
Como amanhã começa a Copa, o Itaquerão é fruto do quê então, do ponto de vista desse histórico todo?
 
Acho que o Itaquerão caiu no colo, como uma solução decorrente desse conjunto de interesses não muito claros, conflituosos, como a negociação dos direitos, caiu no colo do Corinthians, e o Corinthians construiu o Itaquerão, que é um estádio moderno, que tem lá condições para receber o primeiro jogo da Copa. Vou repetir, não estou falando isso porque sou palmeirense, porque eu nunca quis que o Palmeiras, jamais eu pretendia, na verdade, nós combinamos que o Palmeiras não seria incluído dentro dos estádios da Copa, para não entrar nessa confusão.
 
Direitos de transmissão. O problema aí era que o grande negócio para televisão é o futebol. E havia o risco que, se uma outra emissora
ganhasse, isso significa que o futebol…
 
Sem dúvida, o futebol é o…
 
…carro-chefe…
 
… carro-chefe das emissoras de televisão, tanto que, na Argentina, o que fez, a presidente da Argentina [Cristina Kirchner]? Deu para a televisão pública. Tirou esse privilégio.
 
Ainda havia o risco de que o futebol, se uma outra emissora vencesse, colocasse…
 
Não é o caso das emissoras brasileiras, mas, no caso da Argentina, pouca gente sabe, você sabe, certamente, que o conflito entre o “Clarín” e o governo argentino atua tem origens muito ruins. Você sabe da apropriação que foi feita pelos dois grandes jornais, o “La Nación” e o “Clarin”, da fábrica de papel… isso foi feito através de tortura nos proprietários das fábricas de papel. Isso é uma coisa que todo mundo sabe na Argentina, mas, no Brasil, ninguém conta essa história. Foi feita mediante tortura, morte, das pessoas para transferir a fábrica de papel, e aqui não sai nenhuma informação? Eu sei disso há quinhentos anos. Mas se você perguntar para qualquer argentino, ele sabe disso. A disputa pelo futebol é uma coisa muito importante.
 
Se outra rede vencesse a disputa, era só fazer futebol às 8 da noite na quarta, talvez no sábado ou segunda, na hora do telejornal e da novela…
 
Isso, e isso poderia prejudicar enormemente a grade. As pessoas acham que esses interesses não jogam nessa questão. Esses interesses jogam muito pesado… é uma coisa muito importante. Todo mundo sabe que a Globo é ultra-competente para transmitir futebol, e transmite muito bem…mas o jogo é pesado…
 
…e jogaram…
 
…e jogaram. Isso porque fazem parte, são a hegemonia da mídia eletrônica no país. Isso faz parte. A gente não vai ficar enrolando e falando que não é. É assim que é. Então, na verdade, é isso que aconteceu com o futebol antes da Copa do Mundo.
 
Essa é a história, na verdade, porém oculta ou “esquecida”…
 
Não é uma coisa discutida, entende? Na verdade, o pessoal fica discutindo se a Copa vai deixar legado, o legado da Copa… a Copa talvez deixe um legado que é a vitória do Brasil. O resto é pouca coisa. Claro que, em um período de construção, esses estádios passam a produzir empregos, há retornos vários…
 
E é bom lembrar que todo mundo quis. Dezoito cidades queriam os estádios, e todos fizeram seus estádios…
 
Na época em que conquistamos o direito a sediar a Copa do Mundo, eu me lembro que foi um momento de celebração, de satisfação. E até um momento em que o Brasil estava no auge, por seu desempenho econômico, por sua presença internacional. E nós não podemos ser hipócritas… os estádios foram construídos por governadores todos os partidos. Nós não podemos ser hipócritas para dizer “não, eu não queria…”. “Não queria” é conversa mole. Todo mundo queria, todo mundo quis…
 
Quiseram, está aí.
 
Quiseram, está aí. Agora, vamos jogar a Copa, ué. E ganhar.
 
Com protestos ou não, mas receber bem quem vier…
Receber as pessoas, trazer as pessoas aí, mostrar que o Brasil não é só uma coisa ou outra, é muitas coisas… porque a imprensa internacional se valeu muito por conta dos protestos, que, na verdade, eram legítimos pelo que eles reivindicavam, mas estavam batendo na coisa errada. Não é a Copa que está tirando dinheiro dos hospitais.
 
É o sistema todo…
 
O sistema que é ruim, e tira dinheiro dos hospitais e tira dinheiro da escola. Então, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas, tudo bem, a Copa serviu para levantar essa questão. Se ela serviu para levantar essa questão, já deixou um legado, que são as demandas por um país melhor. Demandas justas…apesar de, ao mesmo tempo e por outro ou outros lados,  tanta hipocrisia e tanto oportunismo. 
 

Fonte: Por Bob Fernandes, direto de São Paulo, para o Ter

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