Laranjas dos sucos vendidos pela Citrosuco são cultivadas por escravos
“Confiança, franqueza e amizade como base das relações internas e externas” não pareciam ser os valores que havia no vínculo entre a Citrosuco e um grupo de 26 dos seus empregados da colheita de laranja, resgatados de regime de trabalho análogo ao de escravo no último 2 de julho. A frase que abre a reportagem, slogan na página da internet da companhia, destoa da situação verificada pela vistoria realizada por dois auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e um procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) em dois laranjais da empresa, no interior de São Paulo. O contingente foi encontrado e libertado após uma denúncia recebida pelo MPT.
A fiscalização constatou que as 26 vítimas sofriam restrições à liberdade de ir e vir e estavam sujeitas a condições degradantes de trabalho e vida nas propriedades Fazenda Água Sumida, em Botucatu, e Fazenda Graminha, em São Manoel, cidades na região centro-sul paulista. A Citrosuco foi multada pelo MTE e ainda pode responder a processo na Justiça, além de sofrer outras sanções administrativas, como a entrada na “lista suja” do trabalho escravo ou a perda dos direitos econômicos. Ao todo foram lavrados 25 autos de infração contra a empresa.
O MPT sinaliza que, pelo flagrante de escravidão, deve entrar com uma ação civil pública para processar a companhia na Justiça do Trabalho. Caso condenada em segunda instância, a Citrosuco pode ter o registro no Imposto de Circulação de Bens de Mercadoria e Serviço (ICMS) cassado junto à Secretaria Estadual da Fazenda de São Paulo, com base na lei nº 14.946/2013, conhecida como “lei paulista contra a escravidão”. “Uma empresa desse porte não pode, de forma alguma, fazer esse tipo de contratação [em regime de trabalho escravo]”, justifica o procurador do MPT presente na fiscalização, Fernando Maturana.
Na prática, a lei paulista prevê que pessoas físicas ou jurídicas condenadas pelo uso de mão de obra escrava fiquem impedidas de exercer o mesmo ramo de atividade econômica por um período de dez anos. A empresa pode tornar-se a primeira a ser enquadrada na nova legislação do Estado. Esta não é primeira vez, contudo, que a gigante produtora de suco de laranja enfrenta problemas com o Poder Judiciário ou ações administrativas por parte do Poder Executivo. Em posicionamento à Repórter Brasil, a Citrosuco afirma que “em relação à fiscalização realizada pela Delegacia Regional do Trabalho a empresa está avaliando as medidas cabíveis a serem tomadas”.
Mercado concentrado
A empresa é a divisão responsável pela fabricação de laranja e derivados do Grupo Fischer, um dos maiores conglomerados do setor de frutas e sucos cítricos que atuam no mercado brasileiro. A corporação ainda se divide entre a Fischer S/A e a Companhia Brasileira de Offshore (CBO), ramo de navegação e apoio a plataformas marítimas. Juntamente de Cutrale e Louis Dreyfus, a Citrosuco suco integra um restrito coletivo de apenas três grandes produtoras de suco de laranja no Brasil.
Em 2006, o trio foi alvo da “Operação Fanta”, deflagrada pelo Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE-SP) e a Polícia Federal (PF), para investigar o crime de formação de cartel. No Conselho de Administração Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça que tem por objetivo zelar pela livre concorrência, o grupo de empresas também responde a processo administrativo por prática lesiva à ordem econômica. Ainda durante o começo deste ano, as três companhias também foram condenadas a pagar, juntas, R$ 400 milhões pela Justiça do Trabalho, devido a problemas de terceirização de mão de obra no setor.
Segundo informações do próprio Grupo Fischer, a Citrosuco exporta mercadorias para mais de 90 países. Em 2011, além disso, a empresa anunciou, com outra então gigante do setor, a Citrovita, que pertencia ao Grupo Votorantin, a intenção de se fundir e formar uma única empresa. A fusão, aprovada pelo Cade no final daquele ano, desde que cumpridas certas exigências, reduziu o número de indústrias atuando no setor, então em quatro, para apenas três.
Flagrante de escravidão
Segundo Renan Barbosa Amorim, auditor fiscal do MTE que coordenou a fiscalização nos dois laranjais da Citrosuco, o grupo de 26 trabalhadores resgatados da escravidão havia sido aliciado no município de Ipirá, interior da Bahia, por uma funcionária administrativa da companhia, responsável pela formação das turmas de trabalho. Também participou da ação o auditor Fernando da Silva. Saído do sertão baiano no último 2 de maio, os migrantes chegaram a São Paulo com a promessa de receberem bons salários, um alojamento custeado pelo empregador, para residirem durante o ofício temporário, e condições dignas de serviço.
No período em que permaneceram no Estado, as vítimas, porém, acumularam dívidas, receberam uma quantia abaixo do piso mínimo paulista, estiveram impedidas de romper o vínculo trabalhista e sobreviveram em uma casa sem quaisquer condições de habitabilidade. “A fiscalização entendeu que faz parte do procedimento padrão da empresa o uso de um preposto dela para trazer pessoas de fora e formar turmas de trabalho na colheita da laranja”, explica à Repórter Brasil o fiscal Renan Amorim. Conforme o MTE, todos os 26 resgatados eram registrados pela Citrosuco. Após acordo firmado entre empresa e MPT, em 11 de julho, os trabalhadores retornaram ao município de origem, com o recebimento das verbas rescisórias e o custo da viagem pago pelo empregador.
Para o procurador do MPT Fernando Maturana, a Citrosuco fez a receptação daqueles trabalhadores de modo a tirar “vantagem econômica”. A conduta da empresa pode ser interpretada através da “teoria da cegueira deliberada”, quando um acusado de certo crime nega participação por não estar diretamente envolvido, mas, ainda assim, tira daquela prática algum tipo de benefício. “A Citrosuco precisa daquela mão de obra mais barata para tirar vantagem econômica e fecha os olhos para a forma como é feito o aliciamento. Chamou muito a atenção a forma como eles entregam a contratação de trabalhadores a um preposto.”
Os trabalhadores, assim que chegaram à região de Botucatu, receberam a indicação de uma casa em que poderiam ficar, durante o período em que estivessem em São Paulo para realizar o serviço, e cujo aluguel seria custeado pela empresa. De acordo com a fiscalização, a residência, no entanto, não dispunha de banheiros e era pequena demais para um grupo de 26 pessoas. Segundo os fiscais, a Citrosuco se negou a bancar a permanência em outro local que não aquele indicado primeiramente, mesmo depois de os trabalhadores terem passado a procurar por outra forma de residência. As próprias vítimas passaram a custear seu alojamento em outro local, que era somente um pouco maior e não estava em condições tão melhores quanto o anterior. Hoje, segundo o auditor do Ministério do Trabalho, a casa em que o grupo residia é utilizada pela proprietária para a criação de galinhas e outros animais. A situação do local serviu como base para caracterizar a condição degradante do trabalho desempenhado pelo grupo de resgatados.
Com o aval de um funcionário, a empresa, além disso, indicou aos 26 trabalhadores o mercado de um terceiro envolvido no caso, no qual o grupo escravizado deveria abrir uma conta para comprar seus alimentos. Nas fiscalizações de trabalho escravo no campo, essa cadeia de compra de mantimentos em local determinado pelo empregador é conhecido como “sistema de cantina”. Normalmente, as pessoas escravizadas acabam por somar dívidas com o estabelecimento de tal forma que ficam presas ao local até saldarem o valor que devem. O grupo de 26 escravos chegou a acumular um débito de mais de R$ 15 mil com o comércio.
“Os trabalhadores chegaram a dizer que passaram fome, no momento em que houve a denúncia e também quando a fiscalização chegou ao local, porque não tinham mais como pagar as dívidas no mercado e comprar a própria comida”, detalha o auditor Renan Amorim. O fiscal do Ministério do Trabalho reforça que o caso de trabalho escravo caracterizou-se mais por uma forma de “violência indireta”, não tanto explícita, levando-se em conta as condições degradantes e a restrição da liberdade do grupo escravizado. O grupo esteve preso não só pelas dívidas acumuladas, mas também porque reteve suas carteiras de trabalho. “Isso impedia, por exemplo, que eles deixassem o local para procurar outro emprego”, acrescenta.
No momento em que a fiscalização chegou ao local, contudo, o grupo não desempenhava qualquer tipo de serviço. De acordo com os fiscais, não foi possível, portanto, verificar outras infrações cometidas pela Citrosuco, como o fornecimento ou não de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou o treinamento para o manuseio de ferramentas e agrotóxicos que os trabalhadores poderiam vir a precisar. O fato de os 26 empregados da Citrosuco estarem ou não realizando qualquer atividade não diminui o flagrante de escravidão, conforme explicam os auditores do MTE, já que, de toda a forma, os trabalhadores mantinham vínculo e se viam obrigados a estarem à disposição da empresa, até o momento em que foram resgatados.
Fonte: Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
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