O roubo de carga que daria um filme e foi desvendado no Mato Grosso do Sul
A polícia exibe carga de projetores de cinema recuperada depois de ter sido roubada do depósito da empresa Lumari, cujos donos foram presos por envolv
Tratado como um crime menor, de violência controlada e pouca visibilidade nas apurações, o roubo de cargas segue quase impune e batendo inglórios recordes no Brasil – cresceu 16% em 2014 em relação ao ano anterior, e ultrapassou a casa de 1,2 bilhão de reais em prejuízos com a perda de mercadorias. Um episódio recente, porém, a cujos detalhes a Revista VEJA teve acesso, registra um raro ponto a favor nesse triste histórico. Agindo em conjunto, as polícias do Rio de Janeiro e de Mato Grosso do Sul desvendaram um crime, recuperaram a mercadoria e puseram na cadeia a metade do bando responsável pelo maior roubo de carga já registrado no país: 120 kits de projeção de cinema, avaliados em 35 milhões de reais. No processo, puderam esmiuçar o modo de operação dos bandidos – entre eles um policial – e revelar uma rede de receptação e repasse de produtos roubados com ramificações internacionais. Mais: estabeleceram uma conexão direta entre o roubo e o tráfico de armas para o Brasil.
O destino da carga era o Paraguai, de onde seria repassada para “clientes” na Argentina, Bolívia e Canadá; parte retornaria ao Brasil, via Foz do Iguaçu. Os projetores foram despachados para a fronteira em cinco carretas que seguiram rotas distintas, mas uma foi interceptada em Minas Gerais e as outras, localizadas em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, e em Colatina, no Espírito Santo. O inquérito corre em sigilo, mas a VEJA apurou, com base nos depoimentos de cinco dos nove integrantes da gangue, que as negociações para o repasse da mercadoria eram conduzidas diretamente por um policial civil da tropa fluminense, Maurício Bastos Silva, agora foragido. Seu interlocutor era o vereador paraguaio Mario Niz, da cidade de Pedro Juan Caballero, envolvido em uma série de escândalos no seu país. “Era esse policial que tinha o contato do receptador fora do Brasil”, afirma a delegada Ana Cláudia Medina, de Campo Grande.
Pelo trato entre Silva e Niz, a mercadoria seria trocada – por 30% de seu valor – por fuzis, “mais valiosos do que ouro”, na comparação de um dos marginais. É a prova concreta do que a polícia já sabe há tempos: não só cargas de eletrônicos, mas também carros roubados são entregues a quadrilhas fora do país em troca de armamento, que por sua vez é revendido com enorme lucro por aqui. No Rio de Janeiro, a meca do comércio ilegal de armas, o preço de um fuzil flutua entre 40 e 60 mil reais, dependendo do calibre.
O lote de projetores havia sido importado dos Estados Unidos e da Bélgica para suprir mais de uma centena de salas de exibição a ser inauguradas até o fim do mês, como parte de um programa da Ancine. Do porto do Rio, foi levado para o depósito de uma empresa, a Lumari Transportes, em Vigário Geral, no subúrbio do Rio. Em um fim de semana, o bando estacionou cinco carretas no galpão e surrupiou tudo. Não havia vigilantes, e as câmeras não estavam funcionando. No decorrer das investigações, a delegada Ana Cláudia e seu colega carioca, Marcelo Martins, estabeleceram o envolvimento dos donos da própria Lumari no crime. “Eles já haviam registrado outros dois furtos de mercadorias nesse mesmo endereço. Não temos dúvida de que o modus operandi era fazer a carga desaparecer e registrar queixa, sendo que os ladrões eram eles mesmos”, afirma Martins, que conseguiu na Justiça a decretação da prisão preventiva dos empresários e de mais três envolvidos no esquema.
Nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo são praticados 82% dos roubos e furtos de carga no país, em depósitos ou diretamente em caminhões nas estradas. Fica no Rio o lugar onde mais se roubam cargas no planeta – o bairro da Pavuna, à beira da Via Dutra. No estado inteiro, no ano passado, foram registrados 5 889 ataques. Mas é em São Paulo, em um raio de 100 quilômetros a partir da cidade de Campinas, que se dá a maior parte das ações – 8 510 em 2014, uma média de 23 por dia. Lá a polícia também desvendou um assalto espetacular ocorrido no começo do mês: dez caminhões de mercadorias levadas do depósito de uma rede de lojas foram recuperados, e o maior ladrão de cargas do estado, Albiazer Maciel de Lima, o Bia, foi preso. Aos 38 anos, ele estava foragido desde 2001, quando foi condenado a mais de cinquenta anos de prisão por uma série de assaltos. Antes desse crime, Bia comandara outra ação cinematográfica, em julho de 2014, quando seu bando invadiu o galpão de uma fábrica de eletrônicos e levou mais de 34 000 telefones celulares, tablets e notebooks, avaliados em 20 milhões de reais. Só uma fração do butim foi recuperada, no Paraguai.
Os dois casos anunciados pelas polícias de Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo nas últimas semanas são absoluta raridade no caldo geral de inação e falta de recursos que fermenta o roubo de carga no Brasil. No estado vice-campeão em ocorrências, o Rio, a unidade responsável pelas investigações não conta com mais do que cinquenta policiais e quatro viaturas. É quase o mesmo pessoal que reúnem as poderosas quadrilhas do país – só que com frota bem mais modesta.
Fonte: Revista Veja
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