Novas séries de ficção científica para os órfãos de Black Mirror
(Spoiler: não tenha medo do textão; ele ao menos foi dividido em três episódios)
A tara pelo gênero da ficção científica tem altos e baixos. Atingiu um pico em meados do século passado, lá pelos idos dos anos 50 e 60, com escritores como Isaac Asimov e Ray Bradbury e filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço. Depois, as histórias saíram um tanto da parte “científica” da coisa para serem narradas mais como grandes fantasias, na linha de Star Wars, Star Trek e De Volta para o Futuro. Isso ao menos dentre aquelas produções que mais fizeram fama entre as décadas de 80 e 90. No começo dos anos de 2000, a sci-fi foi obscurecida por qualquer coisa que tivesse super-heróis na fórmula e por livros e filmes sobre o assunto, mas não do tipo futurista – afinal, já estava complexo em demasia compreender como inovações, a exemplo da internet, das redes sociais, do smartphone, transformavam nossas vidas. Recentemente, contudo, a arte de contar histórias baseadas em utopias e distopias dominadas por produtos e seres tecnológicos voltou à moda. A ficção científica destes anos de 2010 retoma, na verdade, a velha tradição de se contar essas aventuras.
A onda foi puxada por Black Mirror. Não quando a série de TV e streaming foi modestamente lançada, em 2011, na Inglaterra. Mas a partir de 2016, quando a Netflix comprou a produção e começou a transmiti-la. Virou febre. E vários outros frutos surgiram em efeito contínuo. Exemplos: Electric Dreams (Amazon), Dark (Netflix), Stranger Things (Netflix), The Expanse (SyFy / Netflix), Dirk Gently (BBC / Netflix), Altered Carbon (Netflix) e The Man In The High Castle (Amazon).
Como fã do estilo, assisti à grande maioria das novidades. E, hoje em dia, se é notável que a Netflix entrou com tudo na onda – na segunda-feira (12) terá até um novo lançamento com Natalie Portman –, é prova de que o treco tá na moda.
Black Mirror, assim como a grande maioria das outras novas ficções científicas, bebe das referências mais antigas desse estilo de narrativa. A sci-fi clássica corresponde mais às formas atuais como as pessoas se relacionam (por vezes, com medo) com as tecnologias que surgem ou que parecem que estão na iminência de brotar por aí, do que com suposições surreais sobre o futuro da humanidade. Por isso, Black Mirror abriu a porteira para a discussão em torno de para onde nos levarão alguns progressos como inteligência artificial, internet, realidades virtuais, assim superdimensionando temores contemporâneos.
Black Mirror e outros frutos da mania mais recente lembram, em estilo, os escritores de antigamente, justamente porque o cenário do mundo (acredite!) se assemelha a como era nos anos 50, 60 e início dos 70. O contexto, agora e há uns 70 anos: apareceu uma cacetada de novas tecnologias – nas décadas que se foram, as preocupações eram com a TV, a exploração espacial, ETs; hoje, com tablets, chips interconectados, Facebook, sites de busca, androides –, há dificuldade em compreendê-las e, portanto, a ficção trata de discutir os efeitos disso. Por que não foi assim nos tempos demasiadamente fantasiosos de Jurassic Park (1993) e Exterminador do Futuro 2 (1991)? Por que lá por 1990 as inovações não tinham tanto encanto, nem geravam igual ojeriza e receio.
Agora, bora falar das novidades. Black Mirror, como escrevi em texto recente desta coluna, derrapou feio na última temporada justamente pelos episódios terem forçado demais no trato das inovações e, assim, ficaram pouco plausíveis. Stranger Things foi outra que, em sua segunda leva de capítulos – a primeira havia sido ótima –, passou dos limites do digestível. Esta aí uma armadilha para os contadores de histórias científicas. É preciso dar aquela viajada, instigar a imaginação, pisar no surreal, mas sem deixar tudo tão inverossímil a ponto de a audiência não mais acreditar e mergulhar na narrativa proposta.
Com a decepção com Black Mirror e Stranger Things, o que sobra dentre as séries do tipo que correm em paralelo? Recomendo começar com Electric Dreams. Tá aí uma série que comprova como o mundo de hoje se parece tanto com o de 60, ou 70, anos atrás.
A produção da Amazon se inspira em contos do americano Philip K. Dick (1928-1982), o PKD, autor, por exemplo, do ótimo livro que inspirou os (também ótimos) filmes de Blade Runner. Na série, dez histórias curtas viram episódios. Como não há uma mente única por trás de cada um dos capítulos – em Black Mirror, a tarefa de deixar tudo como se fosse uma coisa só coube ao habilidoso Charlie Brooker (tanto que as prosas parecem inseridas num mesmo universo, mesmo que em tempos diferentes deste) –, a qualidade desses varia muito.
Para quem quiser ler os originais de PKD, recomendo essa compilação. Vale para comparar o que fora escrito lá em 1960 com o que vemos agora na Amazon. O típico clima das obras de PKD permanece bem na maioria dos episódios modernos: o temor das tecnologias; a forma como as inovações incentivam a criação de autocracias; a exploração espacial como mote para tratar de como a humanidade tem se autodestruído; a mistura da realidade em que pisamos com a virtual; a inteligência artificial como alternativa à humana. E dá certo justamente pelo ambiente de hoje se assemelhar tanto ao que viviam nossos pais e avós no auge de PKD.
O grande mérito de Electric Dreams se dá em renovar os debates, sem medo de adaptar radicalmente as histórias quando necessário. O primeiro episódio, por exemplo, conta a saga de dois personagens que não sabem se suas vidas são reais ou virtuais. Se estão imersos em um jogo ultrarrealista, ou se o surreal que os cerca é, de fato, real. Isso entre dois universos: um bem parecido com o nosso ano de 2018, mas com alguns progressos; outro similar a se os desenhos dos Jetsons fossem protagonizados por uma policial sensual num carro voador. Note a enorme diferença para o conto original: a saga de um funcionário de um museu no qual ele tem a oportunidade de viver entre seu presente (nosso futuro?) e a simulação de uma casa no período da Guerra Fria. Nesse caso, no conflito de Amazon com PKD, o segundo se saiu bem melhor. O conto vale mais que o episódio.
Mas há histórias cujas atualizações se saíram melhores que as referências. Caso de Kill All Others (Mate Todos os Outros), inspirado por The Hanging Stranger (O Estranho Pendurado; os títulos não foram traduzidos, como é de costume em sci-fi, por Amazon, Netflix etc.). Enquanto PKD saiu da premissa de que algo como ETs-ditatoriais estariam se infiltrando entre nós há muitos séculos – ou assim acredita o protagonista do conto –, a adaptação Kill All Others excluiu a bizarrice extraterrestre da fórmula.
No lugar, inseriu um clima de Big Brother, com uma presidente vitalícia (única que pode ser eleita e reeleita), de um Estados Unidos renovado, usufruindo de armas já tão presentes, como celulares, realidades virtuais e Big Data, para monitorar e censurar opositores, caçando mesmo aqueles que só aparentam que um dia representarão risco. Superficialmente, as histórias pouco se parecem. Mas, na essência, ambas tratam de como por vezes nos sentimos como os últimos seres racionais no mundo tecnológico louco que nos cerca (já se sentiu assim no Facebook?). Aqui, a Amazon ganhou de PKD.
Recomendo assistir a Electric Dreams enquanto se lê as respectivas historietas de PKD. Trata-se de uma experiência bem mais interessante do que simplesmente ver a série. Haverá baixos – Father Thing (Coisa de Pai), sétimo da leva da Amazon, é risível – e altos – outro deles é com The Commuter (O Viajante), o penúltimo da primeira temporada. No entanto, seu tempo não será perdido.
Não como seria perdido com outros frutos da nova onda de ficção científica. São dispensáveis: The Man In The High Castle (outra adaptação do trabalho de PHD; mas tão mal feita que não merece mais palavras) e The Expanse (bobagem pura). E são medianos Dark e Dirk Gently (este teve uma primeira temporada interessantíssima, mas uma segunda dificílima de manter qualquer um de olhos abertos). Só que, além de Electric Dreams, há outro que merece umas dez horas de sua vida: Altered Carbon.
De clima cyberpunk, esse pão quentinho da Netflix faz lembrar de clássicos do gênero, como o já citado Blade Runner, ou mesmo o RPG Cyberpunk 2020, que eu adorava jogar em minha adolescência. A premissa é ótima e, apesar de distante de nossa realidade, plausível: a tecnologia que transformou o universo de Altered Carbon se trata de um chip capaz de armazenar a consciência de cada indivíduo, transformando a mente em bytes, em zeros e uns. Esse dispositivo poderia ser transferido de um corpo para o outro, tornando-nos, seres humanos, imortais. Mas seriam, digamos, mais imortais os com mais dinheiro. Bilionários conseguiriam se perpetuar indefinitivamente em corpos clonados, enquanto os de classe média teriam um limite para pular de um corpo para o outro.
O ponto de partida é instigante, assim como a história. O ambiente cyberpunk convence e dá medo – como as melhores ficções científicas dão. O cenário em muito lembra o futuro que o filósofo israelense Yuval Harari traça para a civilização em seu provocador best-seller Homo Deus. E comparar uma série de ficção-científica com um livro futurista de não-ficção é um enorme elogio.
Altered Carbon funciona como aventura e, também, como um ensaio sociológico, filosófico, sobre as novas tecnologias que tomaram de assalto nossas rotinas. Nesse segundo quesito, em muito traduzido em um único personagem, Poe (encarnado pelo surpreendente ator Chris Conner), um software de inteligência artificial que é ainda dono de um hotel descoladíssimo.
Às vezes incomoda pelo excesso de atores nus em cena – isso também um elemento típico do gênero cyberpunk; todavia, abusaram demais… –, por alguns diálogos cafonas (principalmente os de cunho amoroso) e por um final que não deixa evidente se levará a história para um futuro promissor, ou para o buraco. De qualquer forma, Altered Carbon é outro da novíssima leva que vale o tempo dos, como eu, fãs de sci-fi.
Ao assistir a essas produções, faço somente um pedido – ou seria convite?. Veja-as não como mero entretenimento; apesar de, sim, a função primária seja a de divertir. A ficção científica tem como trunfo nos levar a indagar sobre o que é ser um humano. Ou, ainda mais, um ser capaz de moldar tudo a seu gosto, criando, recriando e, agora, dando luz até a novas formas de “vidas”, como as guiadas por inteligências artificiais.
Ainda podemos nos considerar animais, ou estamos no caminho de nos tornar deuses, como aposta Altered Carbon? Em nossa exploração do cosmo, acabaremos por torná-lo melhor ou por destruí-lo, como questionam alguns dos contos de PKD e, logo, dos episódios de Electric Dreams? No que nós estamos virando?
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Fonte: Filipe Vilicic / Veja
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